Tudo bem não estar bem?
Como substituir positividade tóxica por uma validação otimista da vida
Por Adriana Fellipelli para o Linkedin
“Ser feliz o tempo todo é uma tolice; ser infeliz o tempo todo, um desperdício de vida.”
– Mario Sergio Cortella
Nos últimos anos, é praticamente impossível navegar pela internet sem se deparar com hashtags como “apenas boas vibrações” e “gratiluz”. Elas representam a tônica da vida perfeita que muitas pessoas aparentam levar nas redes sociais e, de fato, creem que devem experimentar o tempo inteiro. Como se, de repente, sentir tristeza, tédio, cansaço ou irritação fosse não apenas inadequado, mas também motivo de vergonha para quem expressa tais emoções.
Pois é, há tanta coisa tóxica no mundo contemporâneo – alimentos, pessoas, relacionamentos – que até o positivo tornou-se tóxico.
Na ditadura da positividade, há uma crença universal de que, se pensarmos positivo, as coisas ficarão bem instantaneamente, como em um passe de mágica.
Para tanto, bastaria ignorar os sentimentos considerados negativos e tentar não se lembrar deles.
Nada, porém, poderia estar mais distante da realidade: quanto mais tentamos esconder e fugir do que sentimos, mais atrofiamos a habilidade de lidar com nossos próprios dilemas e contradições, e isso pode ser tão perigoso quanto uma bomba-relógio.
Cada era apresenta suas próprias enfermidades fundamentais. Atualmente, apesar da pandemia de Covid-19 que assola o planeta, podemos dizer que “o século XXI será essencialmente neuronal“, conforme afirma o filósofo coreano Byung-Chu Han na sua obra A Sociedade do Cansaço.
Nesse contexto, doenças como depressão, ansiedade e Síndrome de Burnout representam “infecções neuronais” causadas não por vírus ou bactérias, mas pela incapacidade individual e coletiva de encarar e processar as emoções.
O sociólogo francês Jean Baudrillard advertia: “Quem vive do igual, também perece pelo igual” (Baudrillard, 2002). Vivenciamos hoje uma tirania do excesso de igual, um exagero de positividade em que nos é coibido sentir e demonstrar qualquer coisa que não seja socialmente aceita como boa e desejável. Esse estilo de vida vai ainda além da sociedade disciplinar do célebre filósofo Michel Foucault, formada por fábricas, presídios, quartéis e asilos; estabelecemos uma sociedade do desempenho, composta por redes sociais, academias de fitness, empresas, aeroportos e shopping centers. Paralelamente, passamos de sujeitos de obediência a sujeitos de performance; enquanto a sociedade disciplinar foucaultiana implicava proibição e mandamentos – ou seja, negatividade, gerando delinquentes -, a nova onda do desempenho baseia-se no ilimitado mantra motivacional “Yes, you can” (Sim, você pode), produzindo pessoas depressivas e fracassadas por não alcançar o tão almejado ideal de positividade.
A sociedade do desempenho, portanto, é o pano de fundo da positividade tóxica, incutindo incansavelmente em cada um de nós o conceito de “felicização” do mundo – uma mercadoria que vende muito bem: livros, aplicativos, cursos etc.
Um coach profissional e ético, porém, certamente advertirá: a felicidade não é algo estável nem será permanente na vida de ninguém, independentemente de gênero, idade, escolaridade, profissão ou classe social.
Estar feliz é um processo diário de descoberta e construção, fundamentado em altas doses de autoconhecimento e inteligência emocional. Todo o resto é a mais pura falsificação.
Para refletir…
A falácia do “não desista nunca”
Certo dia Públio Siro, escritor na Roma Antiga, argumentou que um plano que não pode ser mudado não presta. Atualmente, porém, a filosofia “nunca desista”, típica da positividade tóxica, pode ser um tiro no pé – muitas vezes, o mais inteligente é reajustar a rota ou, simplesmente, abandonar o barco.
Saber quando insistir e quando não convém mais lutar porque não dá mais é o verdadeiro pulo do gato que os “positivistas tóxicos” ignoram.
Por isso, por exemplo, tantas pessoas insistem em relacionamentos amorosos fadados ao fracasso, sempre acreditando que o outro vai mudar, ou em uma estratégia de negócios comprovadamente equivocada, apostando que um dia a maré vai virar.
Seguir em um barco furado não é sinal de persistência, mas sim de teimosia e falta de inteligência emocional. Frequentemente, a covardia é exatamente insistir, enquanto a coragem reside em deixar ir.
A “happycracia”: uma negação do direito de estar triste
“Felicidade se acha é em horinhas de descuido.”
– Guimarães Rosa
Ainda em meados do século XIX, o pensador dinamarquês Soren Kierkegaard já apontava a angústia como um dos ingredientes elementares do nosso espírito – a verdadeira infelicidade, portanto, não está em senti-la eventualmente, mas sim em não saber aceitá-la como algo natural (Kierkegaard, 2010).
O próprio pai da psicanálise, Sigmund Freud, corrobora essa ideia, reconhecendo o homem como “um ser de falta”– e a maioria de nós reconhece que é impossível estar bem o tempo inteiro. Apesar disso, a pressão coletiva e a fiscalização das redes sociais podem ser tão opressivas que, muitas vezes, acabamos sucumbindo à “happycracia”.
Curiosidade:
Psicologia Positiva ≠ Positividade tóxica
É importante diferenciar a positividade tóxica da psicologia positiva, abordagem terapêutica popularizada pelo psicólogo norte-americano Martin Seligman, na década de 1990, para estudar do ponto de vista científico os aspectos que influenciam a felicidade humana (Seligman, 2007).
Ao focar no lado funcional da vida, suas forças e potencialidades, a psicologia positiva não ignora nem nega a existência de dificuldades, problemas e transtornos. Quando você se sente triste, não deve se concentrar em ser feliz – na realidade, essa é a principal armadilha da positividade tóxica, pois, para assimilar e digerir as emoções negativas, você não pode rejeitá-las.
A cultura contemporânea insiste em negar ao ser humano o direito de sofrer. A propaganda e o marketing tratam o prazer como centro da vida, e a vida, por sua vez, como um infinito parque de diversões no qual o sofrimento não tem vez. Afinal, o desejo tem sua origem na escassez e os marqueteiros sabem muito bem disso – quanto maior a disponibilidade de uma mercadoria, menor seu preço, seja ela qual for. Se o ouro fosse abundante como a água da chuva, o lastro das moedas certamente precisaria ser trocado.
Se a felicidade é rara, associá-la a bens de consumo incrementa bastante as vendas – por isso o sistema deseja que todos estejam sempre consumindo – e esbanjando “alegria”.
Não é à toa que somos muito mais suscetíveis a comprar uma roupa nova ou trocar de celular quando nos sentimos tristes: a “shopping terapia” anestesia momentaneamente a dor.
Assim, em tempos de mídias sociais e Black Friday, quem desafia a tirania do contentamento e posta algo “negativo” no Instagram, por exemplo, correrá um sério risco de perder muitos seguidores. Os amigos próximos e familiares, por sua vez, tentarão animá-lo dizendo que a vida é bela e boa: “Como você pode ser infeliz enquanto tantas pessoas morrem de fome na África?”, argumentarão. Nesse cenário, admitir a própria infelicidade significa experimentar sentimentos de culpa e vergonha diante de outros que se dizem felizes e gratos com muito menos – como se a vida fosse uma grande régua emocional de sorte e infortúnio.
Para refletir…
Ao contrário da positividade tóxica, a validação otimista da nossa própria realidade e do mundo ao redor é uma ferramenta valiosa para enfrentar os imprevistos e percalços da vida. Por isso, saber diferenciá-las é essencial:
Positividade tóxica versus Validação otimista
Fuga da Realidade versus Resiliência
Fuga da realidade: Emoções reprimidas frequentemente acabam somatizadas, ou seja, expressas através do corpo na forma de doenças. Ao negarmos um sentimento, ele encontrará um meio alternativo para se expressar – é o famoso “tiro que sai pela culatra”.
Resiliência: É ótimo acreditar que tudo vai acabar bem, mas isso não significa que todo o processo tenha que ser agradável. É mais realista pensar “isso também vai acontecer, mas vai passar” quando estamos em momentos de impasse e bloqueio.
As emoções são como ondas: ganham intensidade, sobem e depois viram espuma, até desaparecer lentamente.
Deslegitimação emocional versus Empatia
Deslegitimação emocional: Quando uma pessoa se mostra chateada porque sofreu preconceito ou alguma injustiça e lhe dizemos que “é só ignorar” ou que “isso não existe”, estamos na realidade deslegitimizando suas emoções, dizendo que a vivência dela é falsa ou invisível.
Empatia: “Lamento que você se sinta assim. Precisa desabafar? Há algo que eu possa fazer para te ajudar?”
Hedonismo versus Esperança
Hedonismo: A tendência ao bem-estar instantâneo, ou seja, o desejo de sentir-se bem imediatamente, como um direito natural. Somos humanos, porém não nos permitimos experimentar todo o espectro de emoções.
Esperança: As emoções são informações complexas que temos que identificar e compreender para só então, a partir de uma perspectiva construtiva, aprender lições e planejar mudanças.
Extremismo versus Alfabetização emocional
Extremismo: A classificação de todas as emoções como “boas” ou “más”, uma visão daltônica e extremista diante da vastíssima paleta de cores emocional que compõe a vida.
Alfabetização emocional: Quando somos “alfabetizados” emocionalmente, deixamos para trás a percepção binária e antagônica dos sentimentos – tudo bem ter um dia mais ou menos de vez em quando, tirar uma nota mediana ou estar meio desanimado às vezes. Reconhecemos os fatos e as nossas próprias emoções além do preto e branco do “fantástico” ou “péssimo”.
Para refletir…
Tristeza ou depressão?
Com a positividade tóxica em alta, a depressão tornou-se um conceito maleável, aplicado a diferentes situações às quais todos nós estamos sujeitos, como separações, lutos e desemprego. O diagnóstico de toda frustração da vida como sintoma depressivo é uma forma de patologizar o sofrimento humano, impondo como natural e saudável um utópico estado de bem-estar permanente.
A depressão está presente em casos de melancolia profunda e inexplicável, sem um gatilho real, como uma perda. Os ocasionais sentimentos de mau humor e tristeza que nos acometem, por outro lado, correspondem ao verdadeiro “normal” e desenvolvem nossa capacidade de reação às adversidades.
A multitarefa tóxica: um atalho para o descontentamento
“Mesmo os mais perfeitos espíritos terão necessidade de dispor de muito tempo e atenção.”
– René Descartes
A positividade excessiva também é manifestada por meio de um excesso de estímulos, impulsos e informações, transformando radicalmente a estrutura e o direcionamento da atenção. Ao contrário do que muitos acreditam, o modo multitarefa contumaz não é uma habilidade sofisticada, detida apenas pelas pessoas mais evoluídas da sociedade da informação pós-moderna. De fato, ela é amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem – ao mastigar sua comida, um animal deve cuidar para que ele próprio não acabe comido, enquanto precisa também vigiar sua prole. Não é coincidência qualquer semelhança com nossa atual rotina atribulada, em que almoçamos, respondemos e-mails e olhamos as crianças ao mesmo tempo.
Assim, para estarmos sempre atualizados e positivos, negamos a nós mesmos um aprofundamento contemplativo – o indivíduo não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois deve estar sempre conectado ao que tem atrás de si. Acreditava-se que esse padrão de atenção ampla, mas rasa, nos faria mais produtivos e contentes; em vez disso, porém, ele nos tornou obcecados e neuróticos, aproximando-nos da vida selvagem.
Nesse processo, a atenção sólida e profunda é cada vez mais deslocada por um tipo de atenção bem diferente, a hiperatenção (hyperattention). Essa atenção dispersa é caracterizada por uma rápida alteridade de foco entre diversas atividades e informações, em uma frenética busca por prazer constante. Tal hedonismo representa uma baixíssima tolerância ao tédio que prejudica e até inviabiliza a criatividade – o ensaísta judeu alemão Walter Benjamin comparava o tédio a um “pássaro onírico que choca o ovo da experiência”, ou seja, a inquietação e o contentamento não geram nada de novo, apenas reproduzindo e acelerando o já existente: “Não se tece mais e não se fia, pois para tanto o tédio é necessário como um pano cinza quente, forrado por dentro com o mais incandescente e o mais colorido revestimento de seda que já existiu, no qual nos enrolamos quando sonhamos” (Benjamin, 1977 ).
A felicidade não é um lugar aonde você chega, mas sim uma ocorrência, uma série de eventos alternados. Quando ela vem devemos aproveitá-la, pois sabemos que em algum momento partirá – mas ela sempre volta em momentos agradáveis e alegres, não em um tempo contínuo em que tudo será perfeito.
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Referências bibliográficas
- BAUDRILLARD, Jean. Der Geist des Terrorismus. Viena, 2002.
- BENJAMIN, Walter. Gesammelt Schriften. Vol. II/2. Frankfurt a. M., 1977, p. 446.
- Byung-Shul Han. Sociedade do Cansaço. Editora Vozes, 2015.
- KIERKEGAARD, Soren. O desespero humano. Editora Unesp, 2010.
- SELIGMAN, Martin E.P. The Optimistic Child. Houghton Mifflin, 2007.
Tema: EQ-i 2.0®, Projeto Emotions.
Subtema: Substituindo a positividade tóxica por uma validação otimista da vida
Objetivo: Autoconhecimento, Autodesenvolvimento, Coaching, Coaching nas Empresas.