Quando a polimatia parece fazer um novo sentido
Pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas. Muito conhecimento, que se sintam humildes. É assim que as espigas sem grãos erguem desdenhosamente a cabeça para o céu, enquanto que as cheias as baixam para a terra, sua mãe.”
– Leonardo da Vinci
De origem grega, o termo polímata diz respeito àquele que aprendeu muito de diversas áreas. Durante o Renascimento – entre meados do século XIV e o fim do século XVI – era fácil encontrar polímatas, sendo o exemplo mais conhecido Leonardo da Vinci, que foi inventor, cientista, matemático, pintor e anatomista.
Com o passar dos anos e o avanço do conhecimento, porém, os profissionais tornaram-se cada vez mais técnicos e especializados em campos específicos. A hiperespecialização marcou os últimos dois séculos na sociedade ocidental, reduzindo drasticamente a quantidade d indivíduos que se destacam simultaneamente, por exemplo, nas artes e na ciência.
Recentemente, entretanto, a revolução digital provocou uma reviravolta nesse cenário, impondo às pessoas a necessidade de dominar diferentes áreas para sobressair no mercado de trabalho. Um estudo recente conduzido pela espanhola Deusto Business School e pela empresa de inovação 3M confirma essa tendência, indicando que atuar em várias frentes é a chave para inovar, condição fundamental para obter êxito na nova era (Deusto, 2017).
“Num cenário acelerado, em que a cada 10 anos se duplica a produção científica, a polimatia parece fazer um novo sentido”, aponta o estudo. Neste quadro, parece que “os trabalhadores mais valiosos do futuro não serão os melhores engenheiros ou programadores, serão os polímatas”. Ou seja, pessoas com um alto grau de especialização, sim, mas aptas a entender também as demandas globais da organização e dos seus clientes.
Polimatia pode ser definida como “a capacidade de alcançar a excelência em duas ou mais áreas de conhecimento pertencendo a expressões diferentes do génio humano, com uma combinação de estruturas que podem proceder de campos tão diversos como as artes, as ciências, os negócios, o desporto, a tecnologia ou as humanidades” (Deusto, 2017).
De acordo com Francisco González-Bree, professor de inovação da Deusto Business School e coautor do estudo (Deusto, 2017), desenvolver novas capacitações requer a aplicação do chamado “efeito Medici”, que busca inovações através das interseções de disciplinas e setores.
A teoria do efeito Medici foi elaborada por Frans Johansson, empresário sueco-americano, e descrita em livro homônimo no ano de 2008 (Johansson, 2008). Nessa obra, Johansson defende que pessoas inovadoras modificam a realidade ao penetrar na Interseção, ponto no qual ideias de diversas áreas e culturas convergem, originando uma série de grandes descobertas.
O autor chama esse fenômeno de “efeito Medici” em referência aos consideráveis avanços artísticos e culturais promovidos pela família de banqueiros Medici durante o Renascimento italiano. O efeito Medici pode ser utilizado por todos, bastando desejar abrir a mente e ultrapassar as barreiras da própria área de atuação, tentando conectar ideias. Esse processo, segundo Johansson, é motivado por três principais fatores: o movimento de pessoas, a convergência de disciplinas científicas e o aprimoramento contínuo da computação.
Trata-se de expandir as fronteiras associativas e analisar problemas sob novas perspectivas, combinando aleatoriamente, mas de modo objetivo, conceitos distintos. O efeito Medici consiste, portanto, em afastar-se de redes conhecidas e se aventurar pelas desconhecidas, possibilitando o surgimento de ideias intersecionais.
A polimatia e o empreendedorismo que não se acomodam – “generalistas” versus “especialistas”
Embora o mundo dos negócios contemporâneo esteja cada vez mais heterogêneo, muitas instituições ainda veem o conhecimento especializado como o ativo mais importante de um funcionário. O consultor em negócios Kenneth Mikkelsen e o escritor Richard Martin, no entanto, sugerem um caminho diferente: apreciar os colaboradores “generalistas” da equipe e entender o que eles podem fazer pela organização.
Mikkelsen, coach de liderança e filósofo, destaca o perfil neo-generalista – indivíduo que é tanto “especialista quanto generalista, frequentemente capaz de dominar múltiplas disciplinas”. Para identificar este tipo de profissional são recomendadas algumas perguntas básicas, como: “Você encontrou dificuldades ao descrever o que você faz para outras pessoas… rotulou-se para ser compreendido?” e “Como você vive uma vida com sentido se você vive em mais de um mundo?”.
Essa grande importância da polimatia é corroborada por Robert Twigger, explorador aventureiro, jornalista e escritor britânico. Segundo ele..
Humanos são naturalmente polímatas e nosso melhor potencial vem quando direcionamos nossas mentes a muitas coisas”.
Jessica Alba é um dos maiores exemplos atuais de polímata. Atriz de sucesso, ela expandiu seu campo profissional ao fundar a Honest, empresa de produtos para bebês avaliada em US$ 1,7 bilhão. Ao fazê-lo, Alba provou que é possível ser bela, comercialmente talentosa e uma empreendedora bem-sucedida. Ela possui múltiplas vocações e mostra ser capaz de desenvolvê-las simultaneamente.
As mulheres, aliás, se sobressaem quando o assunto é diversificação. A investidora ícone de Wall Street Sallie Krawcheck aborda a pressão social sobre o gênero feminino resumida na questão “você quer ter uma carreira brilhante ou ser uma boa esposa e mãe?”. Segundo Krawcheck, a sociedade de classe corporativa ainda não admite que a mulher tenha as duas coisas ao mesmo tempo.
Já Sheryl Sandberg, COO do Facebook e criadora do Lean In, um manifesto em prol da ambição feminina, descreve como essa pressão leva muitas mulheres a desistir de seus projetos em vez de acreditar em sua polimatia e perseverar neles. Por que não é permitido ser, simultaneamente, empreendedor e artista, empresária e mãe, empreendedora e musa pop? Por que ainda é inaceitável dizer “eu faço várias coisas” e “não, algumas não são hobbies, eu encaro todas elas com o mesmo profissionalismo”? (Sandberg, 2013).
Steve Jobs, por outro lado, é mundialmente reconhecido como um gênio visionário por ter comandado com maestria por anos tanto a Apple como a Pixar. Isso demonstra a vulnerabilidade da diversificação a críticas até que os bons resultados e a excelência as superem, o que evidentemente não acontece de uma hora para outra.
Polimatia ou conhecimento especializado?
No final do século 16 tornou-se conhecida na Europa a história do Doutor Fausto, homem com uma insaciável sede de conhecimento. Fausto, porém, não foi apresentado ao público como herói, mas sim como uma advertência de que a busca excessiva pelo saber leva à desgraça, já que o personagem acaba sendo arrastado para o inferno no desfecho da obra por ser incapaz de descobrir tudo o que desejava sem o auxílio do demônio (Marlowe, 2006).
Peter Burke, famoso historiador inglês autor de “Uma História Social do Conhecimento” e “O Renascimento Italiano”, utiliza esse caso para ilustrar a chamada “crise de conhecimento”, fenômeno iniciado em 1550. Nessa época, com a descoberta do Novo Mundo e a revolução científica, surgiram também reclamações de que tantos livros haviam sido impressos que ninguém tinha tempo nem de ler os títulos, muito menos de explorar seus conteúdos (BURKE, Artigo Internacional).
Nos ambientes complexos e interconectados de hoje, no entanto, é vantajoso que os profissionais cultivem múltiplas habilidades, tornando-se mais versáteis e adaptáveis a diversas situações. Apesar disso, ainda permanece uma ruptura entre essa multiplicidade e a realidade do mercado de trabalho, onde a maior parte dos empregos disponíveis não permite que diferentes potencialidades sejam de fato exercidas.
Para colocar em prática múltiplos interesses, antes é necessário definir claramente quais são os principais fatores envolvidos no conceito de polimatia, formando a condição geral de possuir conhecimento profundo em várias áreas.
Os componentes fundamentais da polimatia, competências essenciais do líder 4.0
Como vimos, polímatas são considerados “indivíduos 360 graus” por serem mais plurivalentes e criativos, sempre com disposição para aprender coisas novas. Mas o que é necessário fazer para desenvolver a polimatia? De acordo com Waqas (Waqas, 2018), uma pessoa polímata apresenta as seguintes características essenciais:
- Desbridamento psíquico:
Carl Sagan, cientista e astrônomo famoso por seu seriado de televisão “Cosmos”, criticava veementemente a submissão social experimentada por todos nós, especialmente as crianças. Em sua obra “Dragões do Éden”, Sagan defendia que o homem precisa ser livre para “desenvolver e perseguir seus próprios interesses, não importa quão insólitos ou bizarros” (SAGAN, 2011, p. 148).
Esse insight de Carl Sagan originou o primeiro conceito básico para o pensamento livre e polimático: o desbridamento. Brida é o aparato usado nos cavalos para guiá-los na direção desejada pelo condutor. Dessa forma, o des-brida-mento psíquico representa, metaforicamente, a remoção das bridas da mente. Ao retirar suas bridas, o indivíduo consegue assumir o controle da própria vida, deixando de ser mero seguidor de doutrinas ditadas por terceiros. O desbridamento, porém, não é uma tarefa simples nem fácil, exigindo a capacidade de reconhecer as próprias limitações ou bridas. A convivência, a confrontação e a articulação de ideias diferentes são fundamentais nesse processo, gerando uma autocrítica transformacional.
- Introspecção:
Por sermos embridados desde cedo, a brida geralmente se confunde com nossa própria personalidade, tornando difícil notar sua presença. Sendo assim, faz-se necessária uma introspecção minuciosa, na qual devemos revisar os procedimentos mais básicos da nossa rotina. Isso exige coragem para admitir limitações e determinação para encarar as trabalhosas modificações necessárias.
- Extrospecção:
Enquanto avaliamos nossa estrutura pessoal através da introspecção, a extrospecção serve para realizar um exame cuidadoso do ambiente no qual vivemos, verificando quais fatores podem manipular ou influenciar nosso pensamento. A extrospecção é uma atividade contínua, já que nunca é possível conhecer plenamente todas as variáveis com as quais interagimos no cotidiano.
- Abertura crítica:
A abertura crítica representa simultaneamente um meio e um efeito do desbridamento. Ao praticá-la, o indivíduo integra dois procedimentos: a receptividade a novas experiências e a habilidade de pensar criticamente. A abertura é um mecanismo complexo que envolve os seguintes aspectos:
- Postura cooperativa: Prontidão para a cooperação e esforço para superar obstáculos.
- Capacidade de mudança: Disposição para modificar comportamentos de acordo com a situação vivenciada, além de tolerância a imprevistos.
- Curiosidade intelectual: Tendência a pesquisar e testar ideias novas, desenvolvendo múltiplos interesses.
- Imaginação: Explorar a imaginação de modo vívido, utilizando conceitos abstratos e enxergando a vida de diversos ângulos.
- Pensamento independente: Hábito de questionar os fatos de forma individual e persistente, refletindo sobre as motivações por trás deles.
- Empatia mathematica:
Habilidade para reconstruir ideias (ou mathemas, em grego) de terceiros na própria mente com exatidão, compreendendo as origens e razões dos diferentes comportamentos humanos. A empatia mathematica é muito importante para avaliar a qualidade e a benevolência das ações e propostas de outras pessoas, decifrando seus reais interesses.
- Confiança falibilística:
Essa característica envolve a combinação de conceitos aparentemente opostos: a confiança – chamada de autoeficácia na psicologia – e o falibilismo. Possuir autoeficácia significa acreditar ser capaz de desempenhar certa tarefa ou produzir um efeito determinado, enquanto o falibilismo representa admitir a possibilidade de estar enganado em opiniões e crenças pessoais. Assim, a confiança falibilística gera equilíbrio na vida do indivíduo ao dotá-lo ao mesmo tempo de otimismo e cautela.
- Originalidade adaptativa:
De acordo com o modelo de Kaufman e Beguetto (2009), a originalidade pode se dar em quatro níveis:
- Nível interno – coisas novas somente para a pessoa;
- Nível familiar – coisas que são novas ao grupo social da pessoa – colegas, amigos e familiares;
- Nível profissional – coisas novas em uma área de atuação, no entanto sem modificar drasticamente a forma como as coisas são feitas;
- Nível eminente – coisas capazes de impactar de forma relevante uma ou mais áreas do conhecimento.
A tipologia da originalidade em quatro níveis demonstra que ela não é uma qualidade exclusiva dos gênios, embora sejam poucas as pessoas que atingem o nível eminente. É importante notar também que o processo criativo de indivíduos eminentes e não eminentes é basicamente igual: uma combinação (geralmente aleatória) de ideias originando algo novo e muitas vezes surpreendente.
A FELLIPELLI reconhece o valor da pluralidade de habilidades, conhecimentos e ideias para o sucesso empresarial. São alguns dos assessments disponíveis nesse sentido:
Para saber mais:
- O Segredo do Talento: 52 estratégias para desenvolver suas habilidades. Daniel Coyle. Editora Sextante, 2014.
- Leonardo da Vinci. Sophie Chauveau. L&PM Pocket, 2010.
- Know-How: As 8 competências que separam os que fazem dos que não fazem. Ram Charan. Editora Campus, 2007.
Referências bibliográficas
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DEUSTO,2017.Disponível em: https://www.deusto.es/cs/Satellite/deusto/es/universidad-deusto/vive-deusto/los-polimatas-seran-los-profesionales-mas-demandados-en-la-nueva-era-digital/noticia Acesso em: 25/10/2018.
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JOHANSSON, Frans. O Efeito Medici: Como realizar descobertas revolucionárias na interseção de ideias, conceitos e culturas. Editora Best Seller, 2008.
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TWIGGER, Robert. Micromastery: Learn Small, Learn Fast, and Find the Hidden Path to Happiness. Editora Penguin Life, 2018.
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SANDBERG, Sheryl. Lean In: Women, Work, and the Will to Lead. Knopf Publishing Group, 2013.
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MARLOWE, Cristopher. A Trágica História do Doutor Fausto. Editora Rideel. Disponível em: http://www.editorarideel.com.br/wp-content/uploads/2015/07/MIOLO_Fausto.pdf Acesso em: 25/10/2018.
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BURKE, Peter. Artigo Internacional. O polímata: a história cultural e social de um tipo intelectual (traduzido por Ezequiel Theodoro da Silva).
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WAQAS, Ahmed. The Polymath – Unlocking the power of human versatility. Editora Wiley, 2018. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=N5RxDwAAQBAJ&pg=PA118&lpg=PA118&dq=polymath+introspective&source=bl&ots=tnFwjr_KfZ&sig=d0Owd0iXDPY9LQWnoVFrn35aVIc&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwjx2p75ycXeAhUEh5AKHZgCBKgQ6AEwA3oECAUQAQ#v=onepage&q=polymath%20introspective&f=false Acesso em: 25/10/2018.
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SAGAN, Carl. Os Dragões do Éden: Especulações sobre a evolução da inteligência humana. Editora Gradiva, 2011.
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KAUFMAN, James C. e BEGHETTO, Ronald A. Beyond Big and Little: The Four C Model of Creativity. Review of General Psychology, 2009, Vol. 13, No. 1, 1 – 12. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228345133_Beyond_Big_and_Little_The_Four_C_Model_of_Creativity Acesso em: 25/10/2018.
Tema: Cultura Organizacional
Subtema: Polímata: aquele que busca conhecimento profundo em várias áreas, estando na condição de especialista ou generalista.
Objetivo: Desenvolvimento Organizacional, Team Buiding, Desenvolvimento de Competências, Coaching, Tipos Psicológicos, Assessments.