Quando indivíduos e organizações em posição de destaque colocam a própria pele em risco, a humanidade como um todo evolui.
Por Adriana Fellipelli, para o Linkedin.
“Ganhar sem risco é triunfar sem glória.”
– Pierre Corneille
Grande escritor português que viveu no Brasil, padre Antonio Vieira inicia um de seus famosos sermões com a seguinte frase: “O peixe apodrece pela cabeça”. Hoje, presenciamos estupefatos o apodrecimento acelerado de valores morais basilares, como a responsabilidade e a confiança.
Ética é convivência – e a vida, antes de tudo, é uma prática condominial, ou seja, o que nos dá identidade e caracteriza é o mundo que nos cerca, onde nós vivemos.
A questão da ética já era abordada há milhares de anos pelo filósofo grego Aristóteles, que imaginou o caso de um capitão de navio que deve levar uma carga importantíssima de um porto para outro. No meio da travessia, porém, despenca uma enorme tempestade, e ele precisa decidir se joga a carga ao mar para equilibrar a embarcação e salvar o barco e a vida de seus tripulantes, ou a mantém a bordo e arrisca-se a morrer (Aristóteles, 2018). Aristóteles não revela a decisão do capitão, mas destaca a diferença entre ter a pele em risco no que se faz ou não: verdadeiros líderes e profissionais comprometidos cumprem sua missão, a despeito de tempestades e contrariedades, até seu destino final, enquanto a maioria das pessoas prefere ficar sossegada em casa, sem jamais zarpar, ou abre mão das próprias metas ao primeiro sinal de dificuldades.
No livro “Skin in the game” (“Arriscando a própria pele”), o ensaísta Líbano-americano Nassim Nicholas Taleb introduz o conceito homônimo, analisando como os riscos que assumimos ou transferimos diariamente como indivíduos, empresas, cidadãos e governos influenciam nossas vidas (Taleb, 2018).
A filosofia de vida de arriscar a própria pele, contudo, não é nova: tradicionalmente, reis e imperadores lideravam seus exércitos nas guerras, isto é, as sociedades humanas eram conduzidas por pessoas que aceitavam e corriam riscos, não por quem fugia deles ou os transferia para terceiros. Pouquíssimos chefes do passado morriam de velhice na cama; de fato, o próprio status que possuíam derivava da sua disposição e habilidade de proteger os demais, convertendo risco pessoal em mais prestígio e poder.
A nobreza obriga (“noblesse oblige”) a ter coragem e skin in the game; a burocracia, por outro lado, é “uma construção pela qual uma pessoa é convenientemente separada das consequências de suas ações”. Infelizmente, vivemos em um mundo cada vez mais burocrata e menos nobre, um sistema em que a maioria das pessoas não está diretamente exposta aos resultados das próprias escolhas, não dá a cara à tapa e espera apenas resultados positivos ou, pelo menos, não perder nada.
Para funcionarem de modo mais justo e efetivo, instituições, governantes, líderes, empresas e qualquer um que tome decisões importantes, capazes de afetar a coletividade, devem ter skin in the game, assumindo as responsabilidades e os riscos inerentes a cada decisão.
Não à toa que, na Roma Antiga, todo engenheiro era forçado a passar uma noite sob a ponte que projetou, afinal, “quem pescou as tartarugas que as coma primeiro”. Esse ditado tem origem na lenda de um grupo de pescadores que capturou várias tartarugas, porém após cozinhá-las, descobriu que os répteis tinham aparência e sabor horríveis. Como Mercúrio, prestigiosa divindade do comércio e da sorte, estava por acaso passando ali perto, eles decidiram convidá-lo para jantar, servindo as tartarugas como aperitivo. Percebendo que o grupo queria apenas se livrar do alimento indesejado, Mercúrio os obrigou a comer todas, estabelecendo a lei de que devemos comer antes tudo que oferecemos aos demais.
Quando indivíduos e organizações em posição de destaque colocam a própria pele em risco, a humanidade como um todo evolui. Nas palavras de Taleb: “Todo o crescimento da sociedade, seja econômico ou moral, sempre advém de um pequeno número de pessoas. Se a pele deles está em risco, isso pode alterar condições fundamentais da sociedade. A sociedade não evolui pelo consenso, pelo voto, pela maioria, por comitês, por reuniões prolixas, por conferências acadêmicas, e por pesquisas de opinião; somente algumas poucas pessoas já são o suficiente para alterar o equilíbrio da balança desproporcionalmente. Só assim é possível aprender com os erros”. No entanto, grande parte dessas “pessoas importantes” ainda se refugia em uma redoma bem protegida, agindo como ditadores arrogantes e irresponsáveis, que reinam absolutos definindo o que deve ou não ser feito sem qualquer compromisso com os resultados.
O skin in the game pode ocorrer nas mais diversas situações, como no caso do CEO que aplica capital próprio no negócio, do analista de investimentos que aplica recursos pessoais nas ações recomendadas para seus clientes, ou do profissional que consome os itens que ajudou a produzir.
O lema “nunca confie em alguém que não arrisca a própria pele” pode e deve nortear as relações profissionais e humanas em geral, sendo adotado como uma filosofia de vida. Imagine, por exemplo, que você está procurando uma boa escola para matricular seu filho, mas ao visitar uma, descobre que nenhum dos filhos do diretor e dos professores estuda nela. O que você sente? Dúvida ou quase certeza de que o colégio não é tão bom e não merece sua confiança. Afinal, se nem as pessoas que trabalham lá o escolheram, por que é que você deveria?
Ter skin in the game é ainda mais indispensável para empreendedores que estão desenvolvendo um novo produto.
Eles devem ser, antes de fabricantes, seus principais usuários, sofrendo junto com ele e se colocando na pele do cliente para identificar falhas, reconhecer tendências e encontrar pontos de melhoria.
O efeito Dunning-Kruger na era digital
“A ignorância gera autoconfiança com mais frequência do que o conhecimento.”
– Charles Darwin
“Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância”, já pregava Sócrates. Embora seja uma das maravilhas contemporâneas, o mundo digital também empresta voz, alcance e notoriedade a gente muitas vezes incapaz de compreender as próprias limitações e exercer uma influência positiva sobre os outros.
A democratização dos meios de comunicação e do espaço público é indubitavelmente benéfica, porém ela frequentemente vem acompanhada de uma pulverização de responsabilidades pelo que se diz – ou posta.
Hoje, qualquer assunto, por mais técnico ou complexo que seja, é passível de “opinião”, confundindo-se com ela e equiparando-a a análises especializadas e fundamentadas em anos de estudo e experiência.
Assim, pesquisas científicas e autoridades em temas específicos são cada vez mais questionadas e confundidas com “achismos” – a atual pandemia de Covid-19 evidenciou essa realidade de forma ainda mais perversa, e a caça por likes, seguidores e fama online se dá por meio de opiniões aleatórias que, nesse cenário, ameaçam inúmeras vidas.
O próprio coaching também não escapa das garras dos “experts” das redes sociais: autointitulados psicólogos e doutores versam sobre tópicos tão profundos como tipos psicológicos e liderança sem qualquer embasamento, mas sempre cheios de certeza.
Esses “gurus” digitais e seus discursos prepotentes são manifestações típicas de um interessante mecanismo psicológico humano: o efeito Dunning-Kruger. Trata-se de um processo relacionado à metacognição – a habilidade do indivíduo em controlar a própria cognição e reconhecer suas limitações de conhecimento e compreensão em diversas situações. As pessoas afetadas são, portanto, incapazes de atestar a própria ignorância, criando uma ilusão de conhecimento e superioridade intelectual. Logo, quanto mais ignorante em determinado tema, mais confiante o indivíduo se sente ao opinar sobre ele.
O fenômeno leva o nome dos estudiosos que primeiro o exploraram e sua descoberta ocorreu em 1996, quando um inusitado caso chamou a atenção de David Dunning e Justin Kruger, psicólogos da universidade norte-americana de Cornell. Um homem chamado McArthur Wheeler acreditava tornar-se invisível ao passar limonada no rosto e, convicto disso, assaltou dois bancos sem sequer usar máscara, chegando a piscar para uma das câmeras de segurança durante a ação.
Facilmente reconhecido pela polícia após uma breve análise de imagens, Wheeler não tinha sintomas de transtornos psiquiátricos nem estava sob efeito de entorpecentes; ele simplesmente possuía uma crença inabalável em sua invisibilidade durante os crimes e ficou abismado quando seu plano teoricamente infalível falhou: “Mas eu passei o suco de limão!”, teria dito aos policiais.
O caso surpreendente de Wheeler inspirou um vasto estudo publicado em 1999 por Dunning e Kruger. Nele, os pesquisadores analisaram o que leva alguém a sentir-se tão confiante e a superestimar tanto suas habilidades sobre algo, ainda que sem qualquer conhecimento razoável para tanto, assumindo um comportamento estúpido e orgulhoso. Dunning e Kruger concluíram que a ignorância de fato gera mais segurança e soberba do que o conhecimento, originando esse viés cognitivo.
Opondo-se ao efeito Dunning-Kruger, algumas pessoas preparadas e competentes sofrem de inferioridade ilusória, subestimando e duvidando das próprias aptidões e sentindo-se grandes fraudes – trata-se da chamada síndrome do impostor.
O efeito Dunning-Kruger não tem lado social, econômico, político nem ideológico: ele pode afetar igualmente pessoas em diversas posições do espectro. Como explica o psicólogo social David Dunning: “Se você é incompetente, não tem como saber que é incompetente. As habilidades que você necessita para produzir uma resposta certa são exatamente as mesmas habilidades que você precisa ter para reconhecer o que é uma resposta certa”.
Mas como prevenir o viés de Dunning-Kruger em si mesmo? Nesse sentido, o passo mais importante já foi dado: tomar consciência da existência do efeito. Desenvolver humildade suficiente para reconhecer a própria ignorância sobre várias coisas pode ser um processo árduo, exigindo grandes doses de autoconhecimento e inteligência emocional. É também, contudo, uma jornada tão necessária quanto enriquecedora, afinal, como bem dizia o historiador americano Daniel Boorstin, o grande inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão de conhecimento.
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Referências bibliográficas
- ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Edipro, 2018.
- TALEB, Nassim Nicholas. Arriscando a própria pele: Assimetrias ocultas no cotidiano. Editora Objetiva, 2018.
Tema principal: MBTI®, EQ-i 2.0®, Liderança de Alta Performance
Subtemas: O quanto arriscar a própria pele influencia nossas vidas?
Objetivo: Desenvolvimento Organizacional, Desenvolvimento de Equipe, Desenvolvimento de Liderança, Coaching, Coaching nas Empresas.