Maturidade pessoal e autoconhecimento: duas grandes realizações da vida humana13 min de leitura

Por Nuno Rebelo dos Santos
Escola de Ciências Sociais, Universidade de Évora

O autoconhecimento é uma preocupação milenar nos seres humanos. Desde o aforismo ‘conhece-te a ti mesmo’, multiplamente atribuído a vários pensadores da antiguidade (Delfos e Sócrates, por exemplo), que o conhecimento de si se apresenta como um dos mais desafiantes empreendimentos da vida humana. Na psicologia ocidental, grande parte das abordagens que constituíram o tecido científico desenvolvido nos cerca de 100 anos de história contem, explícita ou implicitamente, referência à importância do autoconhecimento. O processo conducente a esse autoconhecimento é, aliás, atributo da abordagem psicanalítica (Axelrod, 2012), que propõe como condição de cura a compreensão, pelo indivíduo em sofrimento, dos seus impulsos e mecanismos psicológicos mais profundos. Inúmeros processos têm sido configurados para ajudar os indivíduos a se conhecerem melhor (e.g., Murray, 2009; Jensen, 2011), demonstrando o investimento que é continuadamente feito nessa tarefa humana.

O autoconhecimento é também um caminho indispensável quando considerada a responsabilidade perante os outros.

Estar comprometido em processos de desenvolvimento do autoconhecimento é uma forma de fortalecer a capacidade de agir positivamente na esfera pessoal de influência que cada um exerce sobre os outros.

Como refere Shusterman (2011), se um indivíduo que ignora que não sabe nadar se lança ao mar para salvar alguém que esteja em aflição, cria um problema maior do que aquele que existia. Este problema acrescido é independente da intenção positiva que o originou. Se o indivíduo estivesse  consciente das suas limitações (não saber nadar), teria procurado outra solução para o problema.

Este desafio do autoconhecimento torna-se, por isso, uma bandeira a prescrever, particularmente àqueles que exercem o que gosto de chamar, profissões ou cargos de influência social intensiva. Líderes e dirigentes em geral, professores, consultores, médicos, advogados ou outros opinion-makers têm ocupações profissionais que os tornam especialmente influentes, detendo por isso mais poder nas organizações e no sistema social como um todo. O exercício dessa influência – e portanto desse poder – deve ser feito, tanto quanto possível, com consciência de si, com conhecimento das suas capacidades, dos seus recursos e das suas limitações.

Mas o exercício desse poder tem ainda uma contraparte sem a qual se produz desequilíbrio: a ética. Sem ética o autoconhecimento pode ser usado contra os outros, como uma arma que é destrutiva e por isso torna-se disfuncional. Sintetizemos então esta dupla asserção: 1) O autoconhecimento, enquanto parte do desenvolvimento humano, é particularmente importante nos profissionais de influência intensiva permitindo-lhes agir de forma mais intencional e consequente. 2) O autoconhecimento por sua vez proporciona mais poder, que para ser bom para o sistema social deve ser acompanhado de igual fortalecimento da ética na ação.

Assim, a disfunção social que decorre de uma possível utilização não ética do poder proporcionado por autoconhecimento refinado responsabiliza os agentes que o promovem – frequentemente os psicólogos-consultores. Esta afirmação contém uma inequívoca implicação prática:

Os agentes promotores de autoconhecimento deverão munir-se de instrumentos que, a par do desenvolvimento cognitivo promovam o desenvolvimento e o fortalecimento ético dos seus clientes, de forma que estes utilizem o poder adicional que lhes está sendo entregue, de forma saudável, construtiva e funcional, considerando o sistema como um todo.

Efetivamente, acima da responsabilidade proximal que um profissional do desenvolvimento pessoal tenha perante os seus clientes, existe uma responsabilidade distal relativamente à sociedade como um todo, ou seja, ao sistema que suporta e enquadra ambos. É importante sublinhar: a responsabilidade distal perante a sociedade está acima da responsabilidade proximal perante o cliente.

Um outro ingrediente que deve ser considerado nos processos de desenvolvimento do autoconhecimento é alertado por Shusterman (2011). Este autor alerta-nos para o ingrediente equilíbrio. Esse equilíbrio visa impedir que os processos de desenvolvimento do autoconhecimento se tornem doentios. Quando um indivíduo se centra excessivamente em si próprio, configurando aquilo que se pode chamar ‘estado de ruminação’ por excesso de atenção sobre si, diversos efeitos secundários podem ocorrer, nomeadamente a depressão e a omissão de atenção aos outros que é tão necessária para a vida em sociedade. Por isso, oferecer no mercado práticas de autoconhecimento deve também incluir mecanismos de equilíbrio do ‘consumo’ de tal serviço, para evitar ‘intoxicação’. Um tal cuidado pode contemplar a elaboração de indicadores de utilização saudável desses serviços prestados. Numa metáfora, da mesma forma que o médico verifica, quando prescreve um medicamento, se o doente é alérgico ao princípio ativo, o psicólogo-consultor deve avaliar em que medida o seu cliente apresenta indicadores de utilização saudável, para si e para os outros, do poder adicional que lhe vai ser outorgado com o trabalho de desenvolvimento do autoconhecimento.

Se estas duas condições prévias forem garantidas – utilização ética do poder que o autoconhecimento fortalece, e prevenção de uma ruminação excessiva e neurótica, quiçá narcisista, sobre si próprio – o trabalho de desenvolvimento do autoconhecimento é de inestimável valor. Ele é um antídoto daquilo que Levine (2001) descreveu como estratégia manipulativa de algumas organizações: em vez de promoverem o autoconhecimento capaz de reconhecer limites, negam esses limites e assim destroem a lucidez dos agentes envolvidos. Cumpridas estas condições, o autoconhecimento é parte muito significativa do desenvolvimento da maturidade pessoal e um ingrediente indispensável para o exercício saudável de profissões de influência social intensiva.

Efetivamente, a estes profissionais deve ser exigida elevada maturidade, quer pela influência direta que, tomando decisões, exercem sobre a vida de muitos outros, quer pelo seu impacto enquanto modelos que estabelecem padrões de conduta que serão seguidos por muito outros.

No advento das abordagens cognitivistas em psicologia, o desenvolvimento do autoconhecimento foi objeto de uma conceptualização por Weinstein e Alschuler (1985) que não foi tão divulgada quanto merecia. A sua utilização na consulta psicológica e diagnóstico tem um potencial assinalável, particularmente como componente da maturidade dos indivíduos.

Segundo Weinstein e Alschuler (1985), o autoconhecimento desenvolve-se em quatro níveis. Estes se organizam por ordem de complexidade crescente, e por isso a progressão dos mais básicos para os mais elaborados corresponde à maior clarividência acerca de si próprio. Situar um indivíduo em um nível (ou estádio) significa que esse é o nível de maior complexidade que ele consegue alcançar quando pensa e fala sobre si próprio. Por isso, para a determinação do nível em que um indivíduo específico se situa é fundamental a apresentação de situações que suscitem produção prolixa sobre si próprio, permitindo-lhe ‘expor-se’ o suficiente para que se possa identificar a maior complexidade de que é capaz no discurso autorreferente.

No primeiro nível, os indivíduos têm um conhecimento de si próprios que é constituído por imagens mais ou menos justapostas, sem uma articulação entre elas, ou por pequenos episódios externamente observáveis, como um registo em vídeo poderia proporcionar. Não existe reflexão ou abstração, mas apenas descrição de eventos sobre si próprio. Este nível, que os autores designam elementar, constitui o mais rudimentar. As diversas imagens ou episódios curtos não têm articulação entre si. Como não existe uma articulação causal entre os eventos, a previsão sobre possíveis ocorrências é simplista ou mesmo inexistente. Alguns exemplos de descrições enquadráveis neste nível poderiam ser as seguintes: fui ao supermercado comprar doces, as prateleiras estavam vazias / amanhã vou ao cinema / tenho um amigo doente. Este primeiro nível de autoconhecimento pode expressar uma limitação cognitiva, mas também algum tipo de resistência para falar de si ou para tornar conscientes processos que poderiam ser dolorosos para o próprio.

O segundo nível, designado situacional, é caracterizado pela capacidade de enquadrar o conhecimento sobre si em narrativas, com um enquadramento temporal completo e mais articulado. Relações causais são indicadas, embora referentes a causalidade unidirecional. As emoções que o indivíduo percebe e expressa vão além das mais básicas, superando uma limitação que se encontrava no nível anterior. No entanto, o foco nuclear das narrativas autorreferentes é externo. Existe uma sucessão de acontecimentos que têm a sua lógica e que expressam o que o indivíduo sabe sobre si próprio. E embora as situações possam ser categorizadas em classes ou tipos, a identificação de padrões de conduta internos ainda não existe. Um exemplo enquadrável neste nível é o seguinte: fui ao supermercado comprar doces e quando cheguei verifiquei que as prateleiras estavam vazias; decidi ir a outro supermercado onde encontrei o que queria; depois de comprar arrependi-me porque sei que os doces são pouco saudáveis; porém, levei-os comigo porque o meu irmão sempre me pede um doce quando está comigo.

O terceiro nível, designado nível dos padrões, é caracterizado justamente pela capacidade de observar padrões de comportamento a partir de realidades psicológicas internas que o indivíduo percebe em si próprio. Além dos padrões de comportamento o indivíduo percebe em si padrões de emoções, de afetos, e de outras dimensões das suas vivências internas. Um exemplo de descrição classificável neste nível é a seguinte: fui ao supermercado comprar doces e quando cheguei verifiquei que as prateleiras estavam vazias; decidi ir a outro supermercado onde encontrei o que queria; depois de comprar arrependi-me porque sei que os doces são pouco saudáveis; neste tipo de situações sinto arrependimento: por um lado quero uma coisa, por outro não quero; sou, como toda a gente, paradoxal: sinto alegria por ter os doces, mas ao mesmo tempo tristeza e arrependimento porque gostaria de resistir em comprá-los.

Finalmente, o nível de maior complexidade é o nível transformacional. Quando situado neste nível o indivíduo identifica e descreve processos internos de como é capaz de operar transformações em si próprio. Além de observar padrões de comportamentos externos e padrões de dimensões internas, identifica processos de autotransformação. Um exemplo é o seguinte: fui ao supermercado comprar doces e quando cheguei verifiquei que as prateleiras estavam vazias; decidi ir a outro supermercado onde encontrei o que queria; depois de comprar arrependi-me porque sei que os doces são pouco saudáveis; neste tipo de situações sinto arrependimento: por um lado quero uma coisa, por outro não quero; então uso uma estratégia: concentro-me no prazer de comer coisas saudáveis e no desprazer de ficar com as mãos colando como quando pegamos os doces com as mãos; assim fica mais fácil para eu adiar o seu consumo, e por vezes acabo mesmo esquecendo-me deles.

Esta visão do autoconhecimento pode ser utilizada como parâmetro em ações estruturadas de desenvolvimento intencional (dos Santos & Pais, 2015) sempre que estas têm como objetivo (ou um dos objetivos) o aprofundamento do autoconhecimento. O modelo estabelece uma sequência de níveis de autoconhecimento de complexidade crescente e essas ações podem utilizar como critério a promoção da transição de níveis de menor complexidade para níveis de maior complexidade.

Apesar deste potencial, a limitação do modelo é muito evidente quando constatamos que a complexidade cognitiva é apenas uma das dimensões do autoconhecimento. Outras dimensões são necessárias aduzir, para cobrirmos um leque suficientemente amplo e consequente de aspectos. Assim, o desafio que se coloca é a identificação de outras dimensões relevantes do autoconhecimento e, com um conjunto abrangente delas, formular um modelo de desenvolvimento do autoconhecimento que possa ser usado como guia para o diagnóstico e o desenvolvimento intencional de indivíduos. Tal empreendimento é particularmente relevante, como mencionamos, para os ocupantes de cargos de influência intensiva, como são os cargos de coordenação, chefia e liderança, entre outros.

Esses indivíduos, pela influência direta e indireta que exercem sobre outros têm um potencial muito significativo de catalisar mudanças muito significativas no sistema social.

Em que medida é o autoconhecimento um empreendimento sempre positivo e desejável? Wilson e Dunn (2004) chamam a atenção para a vantagem circunstancial de manter ‘auto-ilusões’ ligeiras ou moderadas sobre si próprio quando contêm, apesar de tudo, algum realismo, e favorecem o planejamento de ações desenvolvimentais. Este ponto de vista não é isento de polêmica, ao considerar que existe algum autoconhecimento que é ilusório e outro que é realista. Se é verdade que a existência de ambos é intuitiva (e facilmente se aceita), a delimitação daquilo que distingue uma coisa da outra não é pacífica nem inequívoca.

Este ponto de vista traz-nos, por isso, uma questão que necessita de ser resolvida: em que medida o indivíduo específico que se prepara para empreender um caminho de autoconhecimento se encontra em prontidão para o fazer de forma construtiva. A criação de um conjunto de evidências do grau de prontidão pessoal para esse percurso parece ser de grande valor, particularmente para aqueles que se propõem ajudar os outros nesse caminho.

Ampliando ainda mais o escopo de observação, também não pode ser esquecido que o autoconhecimento é apenas uma faceta do desenvolvimento pessoal. Os profissionais que trabalham em desenvolvimento de adultos sabem que todas as facetas do desenvolvimento dos indivíduos se interrelacionam, mas uma tarefa desenvolvimental deve certamente prestar atenção a outros aspectos além do autoconhecimento. A escolha inteligente das áreas da maturidade pessoal que precisam ser atendidas pelos processos profissionais de desenvolvimento de adultos é, portanto, algo que carece de cuidadoso exame e reflexão.

Fontes:
Axelrod, S. D. (2012). Self-Awareness: At the interface of executive development and psychoanalytic therapy. Psychoanalytic Inquiry, 32, 340–357. DOI: 10.1080/07351690.2011.609364
Dos Santos, N. R. & Pais, L. (2015). Structured actions of intentional development. In K. Kraiger, J. Passmore, N. R dos Santos & S. Malvezzi (Eds), The Wiley-Blackwell Handbook of the Psychology of Training, Development, and Performance Improvement (398-418). UK, Chichester, West Sussex: Wiley Blackwell.
Jensen, M. L. (2011). Nurturing self-knowledge: The impact of a leadership development program. OD PRACTITIONER, 43(3), 30-35.
Levine, D. P. (2001). Know no limits: the destruction of self-knowledge in organizations. Psychoanalytic Studies, 3(2), 37-45. DOI: 10.1080/1460895012006180 9
Shusterman, R. (2011). Enhanced cognition, ethics, and some problems of self-knowledge. Journal of Speculative Philosophy, 25(1), 3-21.
Weinstein, G., & Alschuler, A. S. (1985).Educating and counseling for self-knowledge development. Journal of Counseling & Development, 64, 19-25.
Wilson, T. D., & Dunn, E. W. (2004). Self-knowledge: Its limits, value, and potential for improvement. Annual Review of Psychology, 55, 493–518. doi:10.1146/annurev.psych.55.090902.141954

Tema: Autoconhecimento.

Subtema: O autoconhecimento para o desenvolvimento e o fortalecimento ético nas organizações.

Objetivo: Autoconhecimento, Autodesenvolvimento, Desenvolvimento de Liderança, Coaching, Coaching nas Empresas, Desenvolvimento Organizacional.

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